terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Superexposição

- O que quer de mim - perguntou ela enquanto ele procurava um local para se sentar.
- Não sei, ainda não sei. Está tudo tão estranho aqui deste lado de cá. Uma pulsação sem sentido, queria uma dose de calmaria - disse tentando encontrar os olhos dela...

Nada. Não havia ninguém ali. Estava escuro. Otílio não conseguia entender o que significava aquilo. Num instante Marta e ele estavam ali, acabaram de chegar para uma conversa, mas de repente, como num filme de suspense, tudo sumiu. Sumiu o céu, o chão, as casas. Era um completo mar negro. Ele gritou o mais alto que pode, mas nada pôde fazer. Ninguém o ouvia.

- Acha que ele enlouquece rápido? - uma moça com roupa branca, parecendo uma enfermeira, perguntou à Marta.
- É o que vamos ver. Geralmente o remédio demora a fazer efeito. Desde a última catástrofe com as cobaias demoramos mais de dois anos aperfeiçoando. Este será nosso primeiro teste - disse ela olhando através do vidro e, virando-se para a moça, conferiu seu crachá - e você, Ana, seu nome?
- Sim. Dra Ana Lombato. - disse ela cordialmente.
- O que você acha? - finalizou Marta.

Ana parou diante da pergunta e mencionou que iria buscar água. Marta virou-se para o vidro e observou Otílio perdido no escuro. Suas mãos tentavam encontrar algum esteio, mas não encontrava nada. Apenas conseguia sentir uma superfície áspera sob si. Teve medo de sentar-se. Suas pernas não ficavam eretas como um medo que partia do seu mais íntimo receio. Era um sentimento automático que bloqueava sua confiança. Assim, com as pernas semi flexionadas, ele apenas dava passos curtos. Sua voz pedindo por socorro estava carregada de medo, rouquidão. Por instinto falava cada vez mais baixo, como que se tivesse medo de acordar algo ou alguém.
Ana retornou, sentou-se em sua mesa. Mexeu em alguns botões e de repente a sala escura onde Otílio era minado, transformou-se num misto colorido misturando todos os possíveis ambientes.

- Não trabalhei no projeto passado, como sabe - disse virando-se levemente na direção de Marta - mas li vários relatórios seus. Achei satisfatório o método de controle do choque anafilático, devido à carga de exposição ao gás alucinógeno, mas talvez a dose tenha sido calculado de maneira equivocada.
- Descobrimos isto depois - disse Marta com certo incômodo na voz - não lhe disseram isto durante a apresentação dos dossiês da Superexposição?
- Disseram que havia um relatório final, mas que não me apresentariam antes de conhecê-la e passar pela experiência. Quero que entenda - foi dizendo Ana em tom apaziguador - que não mencionei a questão da exposição ao gás para lhe confrontar. Penso que era o que...
- Sim, era o que queriam que descobrisse sozinha. Quanto tempo lhe deram para analisar todos os relatórios.

Houve um barulho estrondoso. Dentro da sala, cerca de dez minutos antes, o escuro total deu lugar a uma frenética mudança e mistura de cores. No deslize dos dedos de Ana pelo painel de controle a redoma foi tomada por uma carga do gás UTHSSOPI (Alucinógeno grau 3). A vista de Otílio se embaralhou e demorou a acostumar-se com a efusão de cores.

De repente seu corpo foi puxado para o chão com violência. Dormiu.

- Otílio, Otílio - ela balançava seu corpo - vamos, acorde.
- Oi, sim - ele foi se levantando - o que aconteceu aqui?
- Venha, deite-se...

- Você acha que desta vez estamos no caminho certo, Marta? - perguntou o chefe da área de ensaios.
- Ainda é cedo para conclusões. Quanto à moça, Ana, gostaria de mais um tempo com ela.
- Claro! - disse num tom animado - Terá o tempo que precisar.

Carlos, o chefe, estava saindo quando Marta o chamou mais uma vez.

- Mais uma coisa. Sobre o relatório final da última pesquisa. Somente deixe que ela tenha acesso quando eu disser que ela pode.
- Assim será feito. Fique tranquila.

Ana permaneceu no corredor do Centro Laboratorial TERES em frente à porta do quarto de Otílio. Ele dormia embalado pelos sedativos. Teve realidade e ilusão misturados de uma maneira muito brusca. Seu cérebro precisava de descanso.

domingo, 1 de novembro de 2015

Durma bem

A porta, fechou atrás de si, no mesmo instante em que, enquanto a mão direita travava a maçaneta, lançava um olhar violento na direção dele. Sentiu em seu corpo a essência feminina de sua entranha. Os calafrios insuportáveis tentando sua alma a desapegar de seu corpo fizeram com que ela fosse lançada ao interruptor da luz, diminuindo sua intensidade. Caminhou lentamente até ele e pediu-lhe que se deitasse. Percorreu a mão lentamente pelo corpo quente.

"Errado!" - disse ela e deu um passo atrás.

Ele sabia o que significava aquele murmúrio e travou sua respiração, que momentos antes preenchia ofegante o ambiente.

"Muito errado" - disse novamente.
"Vamos desistir agora? Depois de tudo que preciso foi? Fica, liga o som, liga o peito arfã" - ele se levantou da cama e procurou o corpo dela para abraçá-la. Ela não resistiu, mas por alguns instantes ela não retribuiu o abraço, apenas permitiu que fosse abraçada. "Não?!" - disse ele recuando o tronco diante da face assustada.

Ela mirou fundo os olhos dele e tocou sua face. "Fosse certo como um dia de sol" - disse já com um semblante doce na face. Em seu corpo os calafrios haviam sumido. A luz ainda era baixa. Ela se desvencilhou do corpo alheio e caminhou até o aparelho de som e colocou "Murmurs" de Hundred Waters para tocar.

As palavras, que foram poucas nesta última meia hora foram trocadas poucas vezes. Um lia o outro com uma facilidade impenetrável pela dúvida. Neste momento ela estava sentada à beira da cama com as mãos juntadas nas pernas enquanto ele, recostado na parede, aguardava alguma nova investida para que se amassem ou desistissem.

Horas atrás, na rua da quadra 15, eles estavam no momento certo combinado. Ela vestia uma saia azul. Ele em calça jeans, simplista como sempre foi.

"Até que enfim! Parece que os anos se passaram num piscar de olhos" - ela disse enquanto ele já emendava. "Bela como sempre. Tive medo de atrasar" - ela riu das duas sentenças, aparentemente desconexas. "São seus olhos" "Clichê?!?!" "Como?" "É verdade! Não minto. Posso segurar sua mão?" - ela olhou em volta. Eram quase sete da noite e estavam a três quarteirões de casa. "Vamos" - estendeu sua mão na direção dele e seguiram devagar pela rua.

No caminho ela foi contando sobre os moradores das ruas próximas de sua casa. Ele, por alguns instantes ficou meio sem saber qual a necessidade de saber da vida alheia, mas ouvia atentamente aquela voz.

"Ali mora o senhor Alvarez. Está sempre sozinho. Raramente uma mulher aparece para faxinar sua casa. Ele está sempre vestido no seu paletó cinza. Passa os fins de tarde na varanda, olhando para a rua. Às vezes me vê e acena, mas na maioria dos dias está longe com seu olhar" - disse enquanto desciam a rua íngreme. Ele se esforçava para prestar atenção ao que ela dizia, pois seus dedos, suavemente, percorriam a leveza da mão dela "Está me ouvindo?" "Estou sim" - soltou um leve sorriso na direção dela "Semana passada uma menina da rua quase morreu" "Meu Deus! O que houve?" "Uma infecção por alguma bactéria de algum alimento que comeu" - passaram pela casa e ela apontou a janela da menina "Ali, menina Clara" "Ela está melhor? Tem notícia?" "Saiu da UTI. Está fora de perigo" - a mão dela foi de quente a um calafrio "Vamos andando" - disse ela puxando ele com força. "Mais alguém?" "Como?" - ele quis usar de uma ironia desconexa, mas ela ignorou esta atitude e chegaram à casa.

"Vinho?"
"Ótimo!"

Colocou um som no rádio e perguntou a ele o que era tudo aquilo.

"Não sei o que se passa, mas sei que lhe amo. Dias, meses e anos pensando em como seria se você estivesse prestando atenção em mim. Esperando meu abraço, assim como eu desejo"
"Para" - ele assustou-se e fez uma cara de desalento "Não. Não se aborreça. Queria somente prestar atenção no seu silêncio. Olhos grudados em mim"

Sorriu e caminhou na direção dele. Ele fechou os olhos e quando os abriu, o corpo dela estava deitado ao lado da cama. Respiração calma, pele suada, cabelo grudado na face. Passou a mão entre o cabelo e orelha dela e beijou-lhe a boca.

"Durma bem".


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Resquício

E um dia você acorda e percebe que está tudo errado. A começar pela escova de dentes posicionada na prateleira errada. O shampoo fora do lugar. A toalha molhada em cima da cama. A chuva do lado de fora. O café frio na garrafa. A sensação de que foi em vão a noite passada. Enfim uma porção de sentimentos confusos que fazem diferença nenhuma, mas que atrapalham muito o desenvolver do cotidiano.
Um dia você acorda simplesmente sem saber se tudo vai dar certo. 'Deu alguma vez?' - ele se pergunta. Ao mesmo tempo que observa os cachorros comendo a ração recém colocada. Os gatos também estão se deliciando, dando seus espasmos de gratidão.
Um dia você acorda e percebe as coisas pequenas que lhe rodeiam, mas neste dia os dias já são tardes demais para abrir o sorriso. Resta apenas uma sensação de que nada precisa ser colocado de lado para valer à pena.

__ Parado de novo em frente ao açaizeiro?
__ Sim, estou apreciando como cresce bonito.
__ O que está a pensar? - ela perguntou com rispidez na voz.
__ Nada demais. Uma poesia que passou pela minha cabeça e que estou me esforçando para me recordar quando estiver na frente do computador... - parou nisto e esqueceu.
__ Sempre assim?

Saiu dali. Deu meia volta no passo e olhou na direção da porta de entrada da casa. O que haveria de mais agudo no seu coração do que manter distância daquilo que lhe fazia humano. Desfez de sua bagagem pesada e sentou-se na grama.

__ Lana, deita, fica!

Disse ao cão e se virando para o portão deu alguns passos firmes com a mistura de coisas que travavam sua mente e que não condiziam com a leveza que trazia na alma. Deixou uma lágrima rolar em seu rosto enquanto caminhava, em círculos desta vez. Alguém estendia a roupa no varal da casa ao lado. Ele ouvia os barulhos que o estender proporcionava. Tinha um aroma suave no ar de roupa limpa. Sentiu seu coração pesar. Do lado de dentro de seu corpo haviam roupas sujas que vestiam sua alma. Precisava de alvejante de alma e urgente!

__ Você vai ficar muito tempo fora? - ela perguntou, já com a voz pesada entre um alívio e uma tortura.
__ Não sei quanto tempo vou caminhar, mas espero caminhar bastante.
__ Não demore a voltar, vai levar o cachorro?
__ Não. Ela não aguentaria mais que uns dois quilômetros. - disse já chegando no portão.
__ Suas coisas, não vai levar?
__ Não quero nada de mim.

O portão fechou atrás de si e um choro ouviu. Não conseguiu percorrer até a rua. Ficou travado do lado de fora. Uma criança numa bicicleta azul passou e acenou. 'Maldita cor azul!' - pensou e acenou de volta.

__ Não se demore. - disse para si baixinho.

O portão se abriu.

__ Disse algo? - a voz veio de uma pessoa diferente - entre logo, já vai chover!
__ Em que ano estamos? - perguntou ele à pessoa desconhecida.
__ 2025, por que?

Dormiu na rua, abraçado a um jornal. Conferiu a data. Dia presente, dia em que nasceu. Por que um dia você acorda e percebe que os anos passam, mal ou bons, eles passam.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Sala escura

A sala estava escura, muito mais do que o normal, aquela escuridão que seus olhos não conseguiam distinguir as paredes ao seu redor. Mais do que uma simples ausência de luz, apenas percebia uns olhos vermelhos ao seu redor. Num primeiro momento não se dava conta do que acontecia. Ouviu uns gritos ao redor, de repente a primeira pancada. Seus olhos ficaram vermelhos também. Seu corpo estava adormecido a tal ponto que não se movia.

__ Mamãe, o que está acontecendo? - perguntou o menino.
__ Não sei, mas fica quieto aí que pode piorar.

Ele então obedeceu e ficou assim observando as pessoas que o açoitavam sem motivo aparente.

__ Deus tem que tomar o comando de sua vida! - ouviu de alguém que estava na sala escura.

Procurou por todos os lados, mas num instante todos os olhos sumiram. então ele pensou: "Deus? O que Deus tem a ver com nossos problemas? Com nossas responsabilidades assumidas?

__ É a merda da cerveja! - mais um sussurro na sala escura...

A este ele apenas pensou nas diversas hipóteses sobre o derradeiro comentário. Dentro da sala escura sua saliva quente emitia o salutar da cevada. Deveria ser por isto, mas nos dias de luta, sua vida, encaixada num balanço de dívidas e dúvidas não dava espaço para vacilos.

__ Não entendi, não entendo... não... - tentava sussurrar, mas sua garganta estava presa e ele, ali, apesar de todos os anos de tentativas de fazer todos crescerem, estava sendo rebaixado a um reles pulha. Foi deixado para trás...

Foi deixado para trás com o mote que fizeram cobrir as responsabilidades da vida. Na vida não há espaço para encobrir o que tem que ser feito. Deixe de fazer sua parte e o dominó não caíra todo.

__ Mamãe, por que isto?
__ Por que o que?
__ Isto?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Caio

Certo de que sua força estava esvaindo-se na penumbra de sua vida, Caio sentou-se na beirada de sua cama e tentou, em vão, recobrar o que o levou a tão profunda tristeza. Sentiu a morte de seu tio em sua garganta. Sentiu a água suja que tomou, o garrafão sendo aberto por seu pai. A porta da cozinha estava aberta. Alguém gritou do lado de fora, mas já era tarde. Correu para fora e não havia ninguém. Apenas um vazio estava lá.

Caio estava sentando ainda à beira de sua cama. Acordou com os sonhos rodeando sua cabeça. Sentiu medo de que não fosse sonho, mas mesmo assim decidiu levantar-se e seguir com sua rotina diária. O banho foi rápido e vestiu-se na mesma velocidade de sempre. Dispensou o café que estava na mesa. O estômago não estava muito bom. Já na rua observava a todos. As crianças em direção à escola. Os adultos indo trabalhar. Os idosos limpando a frente de suas casas. Tentou dali relembrar-se de sua infância, dos primeiros dias de aula. A procura por sua mãe que saía pelo portão. O choro. Relembrou-se de várias passagens de seus dias escolares, formatura, brigas, romances, provas. Já adulto trabalhou. O sentido que pôde levar disto, da vida, é de que toda fase que marca muito, passa rápido. No fim sobram as mãos enrugadas varrendo a calçada.

Ele sentia sua força esvaindo-se na penumbra de uma vida marcada por muitos erros. Talvez o 'não' que tivesse que ter dito traria hoje paz ao seu coração. Dizer não no momento certo é mais útil do que se enganar e confundir seu coração com dias de tristeza. Ninguém gosta de ser triste, mas é a única saída quando não há mais saída. Precisa neste instante recompor, refazer e, refazendo, pautar as lições. Caio não queria fugir de suas lições, mas estava fraco.

__ O que há com você, Caio? - ele havia chegado ao trabalho, sentado em sua mesa, mas absorto não disse bom dia a ninguém. Maria, sua companheira no trabalho, percebeu.
__ Não é nada. Até a tarde isto passa. Só estou meio cansado.
__ Se precisar de algo ou se precisar conversar, me avise. - ela disse num tom suave, tentando confortá-lo e fazê-lo ficar à vontade.

Ele ligou seu computador e passou rapidamente as notícias do dia anterior. Havia uma pilha de pautas nos papéis que rodeavam sua mesa. O editor chefe pediu-lhe que escrevesse algo sobre a inauguração da praça central. Haviam desconfianças em alguns membros da sociedade jurídica da cidade de Régis Soto de que a obra estaria superfaturada. Caio não estava com cabeça para escrever nenhuma linha sobre isso.

"Isto é a vida real" pensava consigo.
__ Isto é a vida real.
__ Disse algo, Caio? - Maria perguntou-lhe.
__ Não. Pensei alto. Desculpe.
__ Desculpa? - perguntou ela surpresa. - Por que?
__ Estou muito abatido. Perdi muitos amigos nesta semana.
__ Como isto aconteceu?
__ Foi uma pedra.

Neste momento ela não sabia o que pensar. Atirou-se para dentro de si tentando alinhar esta última fala de Caio com algo que ela já ouvira em outro momento. Ficou pensando, mas com os olhos fixos nele.

__ Como assim, Caio?
__ Foi uma ajuda, um fio de esperança de ver as coisas mudando, mas a mudança foi morro abaixo. O peso em minhas mãos foi tanto que arrancaram meu braço.

Maria instintivamente correu os olhos nos braços do rapaz. Ele percebeu.

__ Não, Maria, não arrancaram meu braço. Foi um modo de dizer!
__ Eu sei, seu bobo. - ela disse, toda corada de vergonha.
__ Arrancaram de mim uma vontade de articulação de felicidade. Preciso de um tempo para alinhar toda a minha vida novamente aos meus objetivos.

'perdi vinte em vinte nove amizades, por conta de uma pedra em minhas mãos'

__ O que você esta cantando? - Caio perguntou levantando a sobrancelha para Maria.
__ Nada. Preciso voltar a trabalhar. Fica bem rapaz... - ela cantou um trecho de Vinte e Nove da banda Legião Urbana.

Entendi tudo! Pensava ela sobre o rapaz...


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A menos que

Ele sempre andou pela estrada onde se leva a alguma conclusão, mas nunca havia se perguntado o por que estava assim tão triste. Tinha sob si um chão firme, mas seus chinelos estavam gastos. E isto trazia um incômodo desnecessário, pois era somente comprar um novo. Não é bem assim que funciona. Não se compra um coração, não se compra uma noção de tempo espaço, não se traz à luz o amor que uma pessoa pode dar, com toda sua intensa e verdadeira atitude, apenas querendo. Seus chinelos continuariam gastos. A menos que.
 
Qual atitude poderia ter para fazer tudo ser um imenso céu azul? A menos que você saiba que nada é tão simples, se dará bem. Ele sempre andou à beira de um colapso, mas sempre trouxe para si paciência. Cada trecho que percorre são milhões de imagens que carrega, cansava de ficar filtrando uma a uma. Resolveu fixar-se numa só imagem. Um sorriso misterioso.
 
Marco estava cansado nesta manhã de 21 de outubro, mas seu despertador insistia em tirar-lhe da cama. O café ainda não estava pronto. Não havia mais ninguém na casa. Sobrou-se sozinho em meio às turbulentas noites passadas. Acusações. Gritos. Choro. Estava decidido, feriu-se também, mas queria ele o melhor da vida. Assim ficou na cama e nem se importou com o café ainda em pó. Em pó também estavam seus olhos. No espelho não se reconheceu. "O que haverá daqui para frente?" - pensava. Decidiu tomar um banho. Não. Preferiu ficar na cama. O celular piscava luz de notificação. Foi conferir e observou aquele 'bom diaaa'. Perguntou, assim como nos últimos 12 meses 'tudo bom?' e Marco sempre pensava 'todos perguntam - tudo bem? - esta menina pergunta - tudo bom?', ele gostava deste jeito, fazia com que ela parecesse mais real, mais verdadeira. Conversaram e de repente veio uma foto. Pés para o alto, pés na cabeceira da cama. Estava ele ainda deitado e um sorriso tomou conta de sua boca. Era sábado. Precisava levantar-se, sacudir a preguiça. Ir à praia.
 
Foi. Tomou seu banho. A menos que você não faça nada, nada acontecerá. Não chegam números em sua conta bancária se você não mostrar a que veio. A menos que você não viaje não terá conhecido nada, nem ninguém, nem alguém. Será um profundo conhecedor do comodismo. Tomou banho e alguns pensamentos malucos começaram a tomar-lhe a cuca. Gostou quando pensou na cumplicidade da mensagem com a foto. Por alguma razão aquilo ficou impregnado em sua cabeça, pois era simples e tinha uma vivacidade carregada que valeu a ele uma virada nos ânimos daquela manhã. Já no quintal parou diante do sol e abriu os braços. Agradeceu. Pegou o carro e seguiu.
 
Chegando à praia as pessoas já estavam freneticamente loteando os metros quadrados mais privilegiados. Marco chegou próximo do mastro onde montam a rede de volei de praia e deitou sua raqueteira na areia. Mais um pouco e seus parceiros foram chegando. Jogou seu frescobol por longa 1 hora. Cansado, sentou-se e deu-se o direito de algumas cervejas. Meia hora depois mais jogo. Ao longo da jornada foi imaginando virar-se e encontrar o sorriso. As pessoas sorriam, mas estavam alheias. 'Isto também é bom' - pensava. Sorrisos, crianças. Cheiro de mar. Cheiro de felicidade das pessoas no ar.
 
Desligou-se do celular e curtiu a tarde naquela praia. Chegando em casa dormiu.
 
Ele sempre dormia de tarde depois da praia. Seus chinelos ainda ficavam encostados na parede. Precisava jogá-los fora, mas insistia em deixar eles à vista. Não se deu conta de que deveria jogar fora uma sustentação que sempre o incomodava. Precisava de chinelos confortáveis, precisava de uma decisão correta. Marco estava sonhando e seu corpo estremeceu. Acordou assustado. 'O café já esta pronto e a menos que você não queira tomar, preciso de um beijo seu antes de ir para o banho'. Ela já estava de pé enquanto ele sorria para si. No mesmo instante ele pulou da cama e abraçou-a como se os anos tivessem passado e neste instante ele estivesse feliz. Estava.
 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Miró

A porta entreabriu para o homem entrar. Ele mediu ela sem perceber ao mesmo tempo em que escondia suas mãos no bolso. Adentrou após um ligeiro convite com as mãos da pessoa que o recebera. Não a conhecia, nem teria por que conhecê-la. Recebeu a indicação através do seu amigo Rony que de tanto peso que carregava, necessitou relaxar à sombra de um ventilador sob mãos habilidosas em relaxar colunas cansadas. Entrou e foi convidado a sentar-se e aguardar. Mila, como se apresentou a mulher, era a recepcionista. Ela orientava os clientes a curtir a boa música ambiente que tomava a sala de espera.
 
"Sinta-se relaxado, você está num ambiente onde todos os fluídos vão elevar seu corpo a um êxtase que nunca sentira" - disse Mila, num tom suave, e saiu por uma porta à esquerda da sala; retornou com uma bandeja nas mãos. "Chá da casa para relaxar" e estendeu-lhe um copo com desenhos estranhos. Pôrtos aceitou e bebeu do chá.
 
Em poucos minutos a música havia tomado sua mente. Veio à sua mente o mar transparente tomado por um céu azul. Seu corpo estava num formigamento aleatório. Sua vista estava leve. Sorria instintivamente a cada tom que ecoava das caixas de som estéreo daquela sala. Seu corpo estava praticamente em transe naquela poltrona. 'O chá' pensava ele 'o que havia naquele chá?' e logo depois pensava que estava tudo bem. Sentia-se incrivelmente bem.
 
Mila se aproximou e o convidou a acompanhá-la. Caminharam por um corredor com luz branca e baixa. Reparou os quadros nas paredes, mas não conseguiu ler suas assinaturas. Ela parou diante de uma porta branca com detalhes em cobre, abriu-a e pediu que entrasse. "Selena irá recebê-lo".
 
Já dentro do quarto para sua sessão de massagem percebeu um cheiro misto de almiscar com limão. Selena estava à sua espera ao lado de um biombo. "Venha Pôrtos, preciso que vista esta túnica". Ele se encaminhou para trás do biombo e trocou-se enquanto sua massagista posicionou-se ao lado da maca. "Deite-se de costas".
 
Ao deitar-se, ela diminuiu a iluminação do local, abriu sua túnica e iniciou sua massagem.
 
"Relaxe, vou utilizar óleo e muita suavidade para deixar seu corpo liberar energias ruins e absorver paz e energia positiva"
 
Pôrtos cerrou os olhos e entregou-se àquelas mãos. Havia fluidez nos movimentos de Selena. Desde a pressão das mãos até o calor dos poros dos dedos. Cada trecho pressionado por ela entregava uma sensação diferente. Ele cada vez mais se distanciava da Terra. As batidas de Enya se misturavam ao ritmo da massagista. Ombros, costas, coxas, tudo minusciosamente pressionado e ritimado. Ela repetiu os movimentos por mais duas vezes durante quase trinta minutos. Tocou-lhe o ombro e suavemnte pediu que se virasse. Pôrtos parecia dormir, porém sentiu receio, pois o seu instinto mais animal o denunciaria. Esperou por uns segundos e virou-se. Selena fez menção que não havia percebido e disse-lhe. "Tudo bem, isto acontece às vezes". Ele sentiu-se confortado e fechou os olhos. Mais uma seção de óleos e a massagem começou no pescoço com Selena posicionada sobre sua cabeça. Ligeiramente ela encostou sua barriga nele e começou a descer suas mãos através de seu peito. Pôrtos não conseguia se conter. Abriu os olhos e apreciou sua pele branca estendo-se até seus seios. Sua camisa folgada permitia a ele observá-la. No fundo ele não sabia se o propósito era este, mas quis que ficasse assim por mais tempo. Ela retornou e rapidamente ele cerrou os olhos. Não queria entregar-se.
 
Ela foi para perto do biombo e diminuiu um pouco mais a luz. Acendeu outra vela aromática e retornou para seguir sua massagem.
 
Desta vez começou pelos pés. Percorreu cada ponto reflexo dos pés fazendo cada parte de seu corpo se renovar. Subiu pelas pernas e coxas mantendo sempre o mesmo ritmo de pressão. 'Pôrtos parecia dormir' pensava ela. 'Eu poderia estimulá-lo de uma maneira diferente, vamos ver o que acha' e subiu lentamente suas mãos pela virilha. Cada vez mais pressão e ritmo até chegar em sua cintura e então diminuiu o ritmo. A música neste instante estava suave, tocava Watermark. Ela então encostou sua mão suavemente em seu músculo incontido e iniciou ali seu ponto alto da massagem. Numa sequência de movimentos repetitivos e com as mãos umedecidas pelo óleo, pôs-se a incentivá-lo. Pôrtos não resistiu e se entregou. A suavidade da sala foi tomada pelo calor dos dois corpos. Sua massagem foi finalizada com uma fina brisa que tocava Selena. O pingos de sua pele branca eram tão brilhantes que ele sentiu todo seu vigor voltar ao seu corpo.
 
Saiu da sala e parou diante de um dos quadros: 'Miró' e sorriu.
 
Mila o conduziu à saída e despediu-se com um ligeiro "até breve".